inserito in Diritto&Diritti nel novembre 2004

A dupla influência da moral cristã sobre o moderno direito obrigacional

Carlos Alberto Bittar Filho


Procurador do Estado De São Paulo


Doutor Em Direito Pela Usp

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A religião cristã apresenta como nota fundamental o haver sido concebida para ser não a religião de uma família, cidade ou raça, mas para sê-lo de toda a humanidade. Em síntese, cuida-se de religião de caráter universalista (Fustel de Coulanges).

O Cristianismo deitou profundas raízes na formação do mundo ocidental e de sua civilização. Nem poderia ser diferente. Afinal, o Direito, produto que é do meio social e cultural (ubi societas, ibi ius), não poderia deixar de receber importante herança da carga valorativa de origem cristã. Em determinados campos da Ciência Jurídica, como o Direito de Família, o impacto do Cristianismo é naturalmente mais perceptível (monogamia; impedimentos matrimoniais; indissolubilidade, durante séculos, do vínculo conjugal; etc.). Mas o Direito das Obrigações, que tantos juristas (inclusive entre nós) consideram como fruto direto do gênio dos romanos, foi igualmente influenciado pela moral cristã – e de maneira, pode-se dizer, assaz relevante.

O impacto maior da influência da moral cristã foi o haver tornado generalizada, na consciência humana, a obrigação do amor recíproco, considerada como a própria essência da vida (René Savatier). Efetivamente, a lei de amor é da essência dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, sendo por Ele apontada como o maior mandamento. In verbis:

 

“Quando os fariseus souberam que ele tinha reduzido os saduceus ao silêncio, fizeram uma reunião. E um deles, doutor da lei, perguntou-lhe capciosamente: ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Jesus respondeu:

Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente.

Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é tão importante como o primeiro: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos se resume toda a lei e os Profetas’”. (Mateus 22, 34 – 40; Mc 12, 28 – 34; Lc 10, 25 – 27)

 

Assim, em um mundo rígido e duro, o Cristianismo acabou por introduzir o conceito fundamental de caridade. E foi exatamente o Cristianismo que fez com que se adentrasse, no mundo jurídico, a obrigação do amor e da piedade entre os homens (René Savatier). Numa das mais belas e poéticas passagens bíblicas, a importância da caridade na moral cristã é muito bem demonstrada pelo maior dos divulgadores do Cristianismo (São Paulo), in verbis:

 

“Se eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, mas não tivesse a caridade, seria um bronze que soa ou um sino que toca. E se tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e se eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, mas não tivesse a caridade, não seria nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens para o sustento dos pobres, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, isto não me serve de nada.

A caridade é paciente; a caridade é bondosa; não é invejosa; a caridade não é arrogante, nem orgulhosa. Ela não faz o que é inconveniente, não busca o seu interesse, não se irrita, nem se julga ofendida. Não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Ela tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

A caridade nunca passará. Pelo contrário, as profecias vão desaparecer; as línguas vão acabar; a ciência desaparecerá. Porque o nosso conhecimento é imperfeito, e nossa profecia também. Mas quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é perfeito. Assim, quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança, pensava como criança; mas quando me tornei homem, deixei as coisas de criança. Agora vemos por espelho, de maneira confusa, mas então será face a face. Agora conheço de modo imperfeito, mas então conhecerei como sou conhecido. Agora estas três coisas permanecem: a Fé, a Esperança e a Caridade. Mas a maior delas é a Caridade.” (1 Coríntios 13, 1 – 13)

 

Dessa maneira, inaceitável tornou-se o caráter inteiramente estrito dos contratos. Foi assim que as noções de lesão contratual e de ilegitimidade da usura puderam ganhar corpo, com vistas à proteção da parte prejudicada. De modo geral, aliás, toda exploração do fraco pelo forte passou a representar uma violação não apenas da caridade, mas também da própria justiça, pois que esta e aquela acabaram por confundir-se (idem).

Por outro lado, um dos pilares centrais da própria democracia é a fraternidade, da qual se desdobra a proteção à parte contratualmente mais fraca (Georges Ripert). Com efeito, se os homens são irmãos, eles devem ser iguais; se não o são, os mais fracos têm o direito de serem protegidos. Aliás, a experiência demonstra que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes se tornam opressores; dessarte, cumpre ao Estado intervir, em nome de todos, para a proteção dos fracos (idem).

Para a compreensão plena do alcance da moral cristã no âmbito obrigacional, é de rigor o estudo da obra A Regra Moral nas Obrigações Civil, de autoria do inolvidável Georges Ripert, em que se realiza exaustiva análise da jurisprudência da França e das teses de doutorado então defendidas, sobre a temática, naquele país.

É por força da influência da moral cristã que se cria a necessidade de proteção ao contratante em situação de inferioridade e que é explorado pelo outro contraente. É ela que ensina que há limites para o direito do credor. É ela que traz a obrigação de proteger os que estão de boa-fé, castigar os que agem com malícia e perseguir a fraude e até o pensamento fraudulento.

Outrossim, como elegantemente defende Ripert, a regra moral entra no mundo jurídico quando procura encarnar-se numa regra obrigatória de conduta, requisitando auxílio ao poder civil. Destarte, o dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de não se enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação por enriquecimento ilícito, ou sem causa. Em síntese, converteram-se em obrigações civis os mais imperiosos deveres morais: dever de não prejudicar a outrem, de não se enriquecer injustamente à custa alheia e, em certos casos (verbi gratia, obrigação alimentar, acidentes de trabalho, etc.), de prestar assistência a outrem.

A própria natureza vinculativa dos liames obrigacionais como regra geral decorre do labor do Direito Canônico. É que, no sistema jurídico romano, base do moderno, nem todas as convenções geravam ação, de modo que a mera vontade das partes, desacompanhada de determinadas formalidades (causa civilis), acabava por não gerar ação civil (na fórmula latina, ex nudo pacto actio non oritur). O Direito Canônico houve por bem subverter por completo tal regra, fazendo nascer ação dos meros pactos (ex nudo pacto actio oritur), com supedâneo no caráter moral da promessa (John Gilissen). No dizer de Ripert, “a promessa não é, sem dúvida, obrigatória senão por ser sancionada pela lei civil, mas esta lei pede à regra moral o segredo da força da promessa e os caracteres que a tornam respeitável”.

Daí decorre a inevitável conclusão de que o Direito Obrigacional moderno derivou de um duplo processo de cristianização. Por um lado, houve, com a progressiva expansão do cristianismo, uma influência direta de seu pensamento, calcado na obrigação da prática do amor e da caridade, o que ensejou, no âmbito do Direito das Obrigações, a tutela da parte hipossuficiente. Por via indireta, o Direito Obrigacional sofreu o intenso influxo do lavor dos canonistas, os quais acabaram por tornar obrigatórios todos os pactos, com base no caráter moral da promessa. Mais do que o cumprimento de determinadas formalidades, tão característico do direito romano, a palavra dada passou a vincular as partes, o que originou, inclusive, o moderno princípio do consensualismo.

Com o advento do capitalismo, o cumprimento pontual das obrigações passou a ser associado à própria honra (objetiva), de maneira que a respeitabilidade social da pessoa, em nossos dias, depende grandemente da capacidade que tem ela de adimplir as obrigações contraídas. É o que se denomina “crédito” da pessoa. A respeito, transcrevemos, na íntegra, julgados publicados respectivamente na RT 770/377 – 380 e na RT 769/234 – 236, em que a questão é muito bem posta (os trechos fundamentais foram sublinhados):

 

“CONSUMIDOR – Ação indenizatória – Dano moral – Cobrança de prestação quitada com atraso no local de trabalho da vítima, comunicando o fato ao porteiro do edifício, à vista de outros empregados – Conduta que expõe o consumidor a constrangimento e vexame – Verba devida proporcionalmente ao evento danoso, sem subtrair-lhe o caráter pedagógico-punitivo.

Ementa da Redação: A cobrança de prestação quitada com atraso, no local de trabalho do consumidor comunicando o fato ao porteiro do edifício, à vista de outros empregados, expõe a constrangimento e vexame, havendo dano moral passível de indenização, que deverá ser proporcional ao evento danoso, sem subtrair-se o caráter pedagógico-punitivo da verba.

Ap. 599.298.254 – 9ª Câm. – j. 09.06.1999 – rela. Desa. Rejane Maria Dias de Castro Bins.

ACÓRDÃO – Acordam as Desembargadoras da 9ª Câm. Civ. do Tribunal de Justiça do Estado, por unanimidade, em dar parcial provimento à apelação.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária, as Exmas. Sras. Desembargadoras Maria Isabel Broggini (pres.) e Mara Larsen Chechi.

RELATÓRIO – A Exma. Sra. Desa. Rejane Maria Dias de Castro Bins (relatora): Trata-se de ação de indenização, ajuizada por (...) contra (...). Alegou ter efetuado, em junho de 1997, o pagamento de seu débito à ré, no valor de R$ ... No entanto, no dia seguinte, foi surpreendida em seu local de trabalho pelo cobrador da mesma empresa, o qual afirmou ao porteiro do prédio que a autora era devedora e que estava ali para efetuar a cobrança. Aduziu que tal ato lhe causou constrangimento perante seus chefes e colegas de trabalho, por falta de cautela, com prejuízos à sua reputação, tanto morais como funcionais. Em face disso, requereu a indenização de cem salários mínimos, bem como a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita.

Devidamente citada, apresentou contestação a requerida (f.), argumentando que a autora efetuou o pagamento com atraso, provocando assim a cobrança indevida. Salientou que o fato de receber um cobrador não pode ensejar a reparação pretendida, principalmente por ter sido a cobrança efetuada em ambiente reservado, não expondo a autora a qualquer situação constrangedora ou vexatória. Ademais, disse que a própria autora admitiu que o cobrador teria relatado o motivo de sua presença apenas para o porteiro do prédio, não causando nenhum dano moral à reputação da requerente. Fez considerações sobre o quantum a ser fixado em nível de dano moral. Disse que a  requerente não demonstrou o fato constitutivo de seu direito, conforme os ditames do art. 333, I, do CPC, uma vez que a simples alegação não basta para fundamentar a sua pretensão. No caso concreto, a concessão implicaria enriquecimento ilícito da postulante. Por fim, requereu a improcedência da ação.

Réplica às f., reiterando a vestibular.

Em audiência (f.), foram inquiridas duas testemunhas arroladas pela autora. Declarado o encerramento da instrução, o debate foi substituído por memoriais (f.).

Sobreveio a sentença (f.), julgando parcialmente procedente ação, para condenar a ré a indenizar a autora em R$ 5.000,00, atualizados monetariamente desde a data do evento, acrescidos de juros de mora a partir da citação. Os ônus sucumbenciais foram distribuídos em 50% para cada parte, no tocante às custas processuais e os honorários advocatícios dos patronos das partes ficaram fixados em 15% sobre o valor da condenação, permitida a compensação.

Tempestivamente e comprovando preparo apelou a vencida (f.), insurgindo-se contra a condenação nos danos morais, afirmando enriquecimento ilícito da recorrida, desvirtuamento do instituto do dano moral, haja vista que o débito havia sido pago dois dias antes, porém estava atrasado há mais de sessenta dias e, se não fosse essa situação, não haveria cobrança. Com relação ao quantum indenizatório, alegou que deveriam ser usadas as disposições previstas nos arts. 42, par. ún., do CDC e 1.531 do CC, que determinam o pagamento em dobro, e não o que fora aplicado pelo Magistrado a quo, pois contribuiu ao locupletamento indevido da autora, além de contrariar o disposto nos incs. V e X do art. 5º da CF. Nesse sentido, colacionou a conclusão n. 11 do IX Encontro dos Tribunais de Alçada do Brasil: “Na fixação do dano moral, deverá o Juiz, atendendo-se ao nexo de causalidade transcrito no art. 1.060 do CC, levar em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade na apuração do quantum, atendidas as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado”. Por fim, requereu a procedência do recurso.

Contra-arrazoou a apelada (f.), pugnando pelo desprovimento do apelo.

Subiram os autos a esta Corte, vindo-me conclusos.

É o relatório.

VOTO – A Exma. Sra. Rejane Maria Dias de Castro Bins (relatora): As conclusões da r. sentença estão corretas.

A prova atestou que o cobrador da apelante esteve no edifício onde trabalha a apelada, tendo revelado ao porteiro, o que também a ascensorista viu e ouviu, que vinha cobrar a cliente, como devedora da loja.

Não se trata do tipo de conversa a ter com pessoas distintas da própria parte procurada, pois é natural o constrangimento advindo dessa situação, que as empresas devem evitar, sob pena de incorrerem no disposto no art. 42 do CDC.

Ademais, releva considerar que, quando o cobrador procurou a apelada em seu local de trabalho, ela já tinha pago a prestação que ele buscava.

O vexame oriundo de tal situação é decorrência lógica, quando a pessoa preza seu nome, sendo a apelada funcionária pública do (...), não havendo nos autos prova de que assim não fosse. Ademais, as duas testemunhas referiram como a recorrida ficara chateada a incomodada. O dano moral se caracterizou.

No direito comparado, há previsão específica no ordenamento jurídico, para informações em descompasso com a realidade, como no § 824 do CC alemão (“quem afirmar, contra a verdade, um fato, ou difundir o que o que é próprio para prejudicar o crédito de um outro, ou ocasionar outros prejuízos para a sua profissão ou bem-estar, terá de satisfazer ao outro o dano daí resultante, mesmo que não conhecesse ele a verdade, mas a devesse conhecer”). Ou no art. 484 do CC português (“quem afirmar ou difundir um fato capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”).

O direito brasileiro conheceu dispositivo assemelhado depois da edição da Lei 8.078/90, ao referir que os bancos de dados devem conter informações claras e verdadeiras, dando ao dito devedor o direito de pedir retificação. Mas não há previsão específica da responsabilidade civil decorrente. Está, em todo caso, assegurada constitucionalmente a indenizabilidade do dano moral à pessoa (art. 5º, V e X, da CF).

O crédito, na atual conjuntura em que vivemos, representa um bem imaterial, que integra o patrimônio econômico e moral das pessoas, sejam elas comerciantes ou não, físicas, formais ou jurídicas, que vêem reduzido seu conceito.

No entanto, considerando que houvera anterior atraso, com pagamentos além do vencimento e mesmo este visado fora recente, mais a repercussão, que não parece ter sido muito grande, estou em reduzir para vinte e cinco salários mínimos a indenização, não destoando de outras decisões a respeito, nesta Câmara.

Quanto ao pedido de aplicação dos arts. 1.531 do CC, ou 42 do CDC, não colhe amparo. Não se trata de regras fixas nem critérios determinados para a avaliação do dano moral, que segue o art. 1.553 do CC.

Deve-se outorgar indenização proporcional ao dano, mas também não esquecer o caráter pedagógico, porque o ofensor, sozinho, não procedeu com o comportamento que seria o ideal. Como a sociedade deve buscar o aperfeiçoamento de todos os seus membros, à luz da noção do bem comum a ser atingido, voltado aos fins da vida, enquanto a vida é convívio, tanto se utiliza da imposição da indenização para ensinar o infrator como para repor o ofendido ao estado anterior, sem exageros que desbordassem a restitutio devida. O aspecto pedagógico tem dupla direção: visualiza a vítima e o autor do ilícito, pois assim também a sociedade se defende e defende seus membros. Todo ilícito pode guardar, de alguma forma, uma repercussão mais abrangente à simples esfera da vítima, via de regra; uma espécie de dano marginal por outros sofrido mais ou menos perceptivelmente em razão do ilícito, e que esta mesma sociedade quer coibir, também através da outorga da jurisdição com exclusividade ao Estado, via Poder Judiciário, a ser instrumento de pacificação social. Muito embora a ênfase pedagógica maior haja de repousar sobre políticas educacionais (lato sensu, não apenas educativas), cuja promoção é de incumbência dos outros poderes do Estado.

Disto, portanto, extraio que a responsabilidade civil, além do trinômio “conduta-nexo de causalidade-dano = dever de indenizar”, é de ser encarada, na mensuração da reparação, cumulativamente com relação à defesa da sociedade que reconhece este direito subjetivo do lesado e quer, para a harmonia das relações futuras, tanto que este não se aproveite do fato gerador do dano, como que o ofensor receba um alerta, uma sinal de advertência para suas ações/omissões futuras no seio desta mesma sociedade.

É como se restabelecer as partes ao estado anterior ou o mais próximo dele, além de reparar a lesão, fizesse seu autor voltar ao momento imediatamente anterior a ela, orientando sua escolha desse momento adequadamente, ou seja, como o exigiria o bem comum e desejaria a sociedade. E, para isto, foi, em certa medida, ensinado pela reparação a que condenado.

Voto, destarte, em dar parcial provimento ao apelo, ao efeito de reduzir a indenização pelo dano moral a vinte e cinco salários mínimos. Custas em proporção ao decaimento, correndo um quarto pela ré e três quartos pela autora. Honorários de 15% sobre o valor da condenação pela ré e 4 URHs pela autora.

A Exma. Sra. Desa. Mara Larsen Chechi (revisora): De acordo.

A Exma. Sra. Desa. Maria Isabel Broggini (pres.): De acordo.

ApCiv 599.298.254, de Porto Alegre: “Deram parcial provimento. Unânime”.

 

“DANO MORAL – Indenização – Cartão de crédito – Inclusão do nome de consumidor em serviços de proteção ao crédito pelo não pagamento de encargos do contrato – Verba devida pela administradora, se o suposto contratante não praticou qualquer ato positivo capaz de configurar adesão implícita, pois a falta de recusa expressa dos serviços não caracteriza aceitação tácita do seu fornecimento.

Ementa da Redação: A falta de recusa expressa de cartão de crédito enviado por administradora não caracteriza aceitação tácita do fornecimento de seus serviços, mormente se o suposto contratante não praticou qualquer ato positivo capaz de configurar adesão implícita, razão pela qual deve a empresa indenizar o dano moral suportado pelo consumidor que teve seu nome incluído em serviços de proteção ao crédito pelo não pagamento de encargos do contrato.

Ap 756.877-4 – 9ª  Câm. – j. 09.02.1999 – rel. Juiz Sebastião Flávio da Silva Filho.

ACÓRDÃO – Vistos, relatados e discutidos estes autos de Ap 756.877-4, da Comarca de Campinas, sendo apelantes e reciprocamente apelados (...) e (...).

Acordam, em 9ª Câm. do 1º TACivSP, por. v.u., em dar parcial provimento ao recurso.

Trata-se de ação de reparação de danos morais e materiais resultantes de informação a órgão de proteção de crédito, sobre a existência de inadimplemento contratual pelo não pagamento dos encargos pela utilização de cartão de crédito. Alega o autor que não dera seu consenso para semelhante tipo de contrato, já que, apenas, unilateralmente, a administradora do cartão de crédito considerou existente adesão tácita pela não recusa expressa de ditos serviços.

Julgada parcialmente procedente a ação, apelaram as partes. O autor, por meio de recurso adesivo, objetiva o reconhecimento dos danos materiais também dizendo que a prova documental e a oral trazidas para os autos são suficientes para demonstrar os negócios não concluídos por causa da informação negativa ao órgão de proteção ao crédito. A administradora de cartão de crédito busca a reversão integral da solução dada, com o argumento de que não atuou ilicitamente, uma vez que se aperfeiçoara o contrato de utilização de cartão de crédito pela não recusa formal da oferta de serviços, tendo ademais a parte contrária concorrido com culpa, ao não informar sua discordância quanto às contas apresentadas. Reputa não possuir o fato idoneidade bastante para ensejar a indenização por danos morais, uma vez que se trata de mero constrangimento, portanto, sem que se fale em dor profunda, não tendo ainda sido comprovado tal estado de alma. Alternativamente, busca a redução do valor da indenização, tida como exagerada.

O recurso da ré foi recebido e considerou-se deserto o do autor por falta de preparo. Houve impugnação ao recebido, que foi preparado.

É o relatório, adotado o da r. sentença quanto ao mais.

Não deixa de ser pitoresco o argumento da administradora de cartão de crédito em pretender que existiu uma aceitação tácita de seus serviços, da parte do adversário, pela não recusa do cartão de crédito que lhe fora enviado, quando a não utilização era o sinal mais evidente da recusa. Em suma, ausente a manifestação expressa, seria indispensável no mínimo a prática de um ato positivo para se ter por caracterizada a adesão implícita.

Falar em culpa exclusiva da vítima do dano ou até em concorrência dela pela omissão em não informar sobre sua recusa dos serviços, diante do recebimento que tivera dos extratos ou faturas enviados, é no mínimo hilariante, se não tinha ela, por lei ou pelo consenso de vontades, semelhante dever, aliás, parecendo a apelante ignorar o princípio constitucional segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Pretender ver provado o dano moral não deixaria de ser outra incoerência, porque esta sua natureza é justamente para arredar os percalços da prova, sendo de regra ínsito ao próprio ilícito.

Sua aferição é confiada ao arbítrio do Juiz em decorrência de sua interação no meio social, fator de absorção dos valores éticos ali reinantes, o que o faz suscetível, portanto, aos influxos de certas circunstâncias comuns a todos os membros da sociedade. Saberá, pois, por essa assimilação de valores que, no atual contexto social, não deixa de ser deveras aborrecedor e revoltante ter o nome conspurcado como não cumpridor dos compromissos financeiros, quando isso decorre de ato de pura irresponsabilidade de outrem e que teria não só o dever, mas condições absolutas para evitar o dano.

Enfim, semelhantes informações, tão em voga hoje em dia, já não se propõem mais à função inicial para a qual foram concebidas, de garantia contra maus pagadores, e voltam-se inteiramente a outro intuito, que é o de compelir a pagamento de dívida, pela ameaça de estigmatização como caloteiro, já que o serviço acabou por tomar tal feição, fazendo tabula rasa de toda e qualquer situação e disso se aproveitando à larga os credores ou supostos credores.

É hora de pôr cobro à utilização do efeito infamante assumido pelos serviços de proteção ao crédito, como se fez com o protesto, e o melhor modo de realizar isso é sancionar severamente quem a tal se propõe abusivamente, como no caso dos autos. Por isso mesmo, embora tenha havido excessivo rigor na r. sentença, até porque as condições pessoais da vítima em quase nada devam influir para essa valoração, todavia o abuso com que se praticou a conduta e a força econômica da administradora de cartão de crédito justificam sanção de forte efeito intimidador.

Porém, não pode ser perdido de vista que as repercussões da conduta ilícita da administradora de cartão de crédito cessam definitivamente com o cancelamento do registro, portanto sem deixar seqüelas indelevelmente, como ocorre quando há danos físicos ao corpo humano irreversíveis. Ademais, no caso examinado, tudo não passou de constrangimentos e transtornos para solução do impasse. Por isso, reputa-se suficiente para a punição a indenização no importe de trinta mil reais, com reajuste segundo o critério da r. sentença.

Em face do exposto, dá-se provimento parcial ao recurso da administradora de cartão de crédito.

Presidiu o julgamento o Juiz João Carlos Garcia, e dele participaram os Juízes Luís Carlos de Barros (revisor) e José Luiz Gavião de Almeida.

São Paulo, 9 de fevereiro de 1999 – SEBASTIÃO FLÁVIO DA SILVA FILHO, relator.”

 

 

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